Cansado de viver

Hoje, eu, a quem faltam muitos, mas mesmo muitos anos para chegar aos 96, se lá chegar, dei comigo a tentar compreender o cansaço do tio. Talvez, porque no café, D. Marta estivesse a queixar-se do mesmo - estou cansada de que cá andar, dizia ela à D. Paula proprietária do local. D. Marta é uma senhora que deve andar na casa dos 40, uma mulher enxuta, com muito caminho para andar, na visão de D. Paula (brasileira nordestina) senhora duma alegria efusiva, que agradece a Deus, até, o que de mau lhe acontece, saravá.

D. Marta, retruca com voz firme. Vive-se num mundo onde tudo nos é cobrado.

Cobram-nos o dever
de ser alguma coisa
de ser feliz
de sorrir o dia todo
de acenar aos vizinhos
de acordar linda
de deitar disposta
de trabalhar antes e depois da hora
de ser magra
de ser simpática
de ser esposa modelo
de ser mãe maravilha
Cobram-nos tudo, tudo, tudo, menos o de dever de sermos nós mesmas. 

Não sei como acabou a conversa entre as duas, pedi, paguei e tomei o meu café. Saí dali fazendo o caminho de regresso a lembrar que:

Tive um tio que morreu com 96 anos, muitos dos quais com uma frase que repetia sempre que nos encontrávamos. Minha filha, estou cansado. Tão cansado. Cansado de viver. Já são muitos anos, assim terminava com a tristeza estampada no rosto. 

Eu não o conseguia entender. Tinha uma vida tranquila, sem depender de ninguém, fruto do muito trabalho, é certo, mas agora descansava, estava lúcido, não precisava correr para nada nem por nada, até a saúde e ele pareciam ter um pacto de amizade.

Tive um tio que se matou, porque estava cansado de viver. Ou será que estava cansado de tanta cobrança?

*** 
2019-11-06 
nn(in)metamorphosis