Era moça, de
gavetas arrumadas, de caixas e caixinhas organizadas, simplesmente porque não
gostava de arrumar, e se tudo estivesse arrumado, não precisava de o fazer
Fazia tudo
em modo corrido, era efervescente, como se o tempo lhe pudesse fugir, como se tivesse,
sempre, uma encomenda para entregar com precisão ao segundo
A Margarida tinha-lhe
dito, hoje, que falava a correr, como se tivesse medo que as palavras se pudessem
esgotar, antes de se conseguir exprimir
A vida é uma
viagem que se deve desfrutar
Acrescentara
ela
Era verdade,
mas o pior de tudo é que se sentia cansada
O fazer as
coisas com mais calma, como se o tempo não existisse, nem lhe parecia difícil,
até porque o tempo não existia mesmo, tinha sido invenção do homem
Já as palavras,
essa seria matéria delicada
Eram usadas
por toda a gente, e de modo indiscriminado
O que
faríamos se elas se esgotassem?
Como
viveríamos com a sua ausência?
Num quadro
medonho, pensou, e se só ela, um dia, perdesse todas as palavras?
Inquietou-se,
não suportava a ideia
Pensamentos,
em avalancha, atropelavam-se uns aos outros
De repente,
as caixas! As caixas seriam a solução
Arranjaria
uma, tamanho médio, onde guardaria as palavras que não podia perder
Não podia
guardar muitas, nem as queria amontoadas
Se bem
pensou, melhor o fez
Abriu uma
caixinha e sem hesitação
Deitou mão
ao amor
Dificilmente
sobreviveria sem ele
Deu-lhe por companhia
a esperança
Precisava dela,
hoje mais que ontem
Juntou-lhe a
amizade
Era-lhe imprescindível
A mágoa e a
dor, sem que pudesse evitar, saltaram lá para dentro
Deixou que
ficassem, sabia-as inevitáveis
Faltava-lhe
uma
Era inútil enganar-se
a si mesma
Com alguma
vergonha e com muito cuidado, pegou no sonho
Não devia,
mas sabia não resistir-lhe
Tentaria
usá-lo pouco, e sempre às escondidas
Respirou
fundo, e com uma delicadeza rara nela, fechou a caixa
E com ela,
faria o resto da viagem
Em silêncio
Ou com mais
calma, vá
2010-11-28 nn
***
2019-09-27
nn(in)metamorphosis